A Terceira Idade

E porque não falar com quem tem verdadeiro conhecimento sobre a realidade da terceira idade em Portugal?
Conversa puxa conversa e, entre hábitos e rotinas narrados, chegámos à conclusão que não há só uma realidade: há, pelo menos, duas - a das grandes cidades do litoral e a das terras esquecidas do interior.
Não se estabelecem apenas contadições nas rotinas, mas também nas crenças e devoções e no entendimento do que é,  ou não, a solidão.

Numa das grandes cidades do Litoral, encontrámos...

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Américo Fidalgo, um senhor de 82 anos residente em Lisboa, num bairro da freguesia de Sta. Maria dos Olivais onde toda a gente se conhece, passa os seus dias, embora rotineiros, em constante movimento. Entre as 9h da manhã, hora a que acorda, até as 22h, hora a que, cansado, vai dormir, preenche a sua vida com manhãs passadas na praça e supermercado, passeios a seguir ao almoço, sestas quando chega a casa e petisco com o seu grupo de amigos ao final do dia “na tasca da Dona Edite, ao lado da Paiva Couceiro”, sem descuidar, contudo, a limpeza da casa, as horas certas das refeições e o telejornal da RTP1 à hora do jantar.
Vindo do campo por volta dos seus 20 anos, os seus hábitos passam, acima de tudo, por garantir o convívio e a ligação à família, trabalhando essencialmente na lida da casa, num plano contrário ao dos homens da sua idade que moram ainda na "terra". Vive numa rotina saudável, embora acredite que o médico lhe está sempre a esconder problemas, e pretende preservar a juventude e aproveitar o dia, sobretudo após o falecimento da sua mulher, Amélia, em tempos sua principal companhia, não deixando, deste modo, vencer a solidão.

Maria Esteves, deste sempre residente em Lisboa, leva uma vida muito diferente da dos restantes participantes, nesta recolha de histórias quotidianas. Esta senhora, com 75 anos, levanta-se por volta das 7h para ver as notícias da manhã. Quando estas acabam, prepara-se para ir à rua comprar pão e alguns miminhos deliciosos para o filha e os dois netos que vivem no andar abaixo. Depois de estes saírem de casa, respectivamente para o trabalho, a Faculdade e para a Escola Secundária Vitorino Nemésio, começa a arranjar o que ficou desarrumado na desorganização que é estarem três pessoas a tentarem sair de casa, sem se atrasarem. A filha, Paula Esteves, não quer que a mãe faça esforços, mas esta enérgica senhora diz-nos que se a filha não a deixasse ajudar nas lidas da casa ficaria "chateadíssima". Durante o resto da manhã, a Sr.ª Maria volta para sua casa, vai passear o cão da família, Doggy, dá uma grande volta por Moscavide e regressa para  ver a Praça da Alegria: gosta de tentar acertar nos jogos, mas nunca liga para lá - “nunca tive sorte ao jogo, não era agora depois de velha que iria ter”, diz-nos.
Faz o seu almoço, orgulhando-se de o Dr. não lhe pôr restrições na comida, como põe às suas amigas. E é com estas mesmo que vai ter da parte da tarde. Mas não mantém uma rotina! A maior parte dos dia vai para o jardim de Moscavide, às vezes vai para o centro de dia e noutros dias vai ainda para casa de uma amiga que também, infelizmente, já vive sozinha, jogar às cartas. Viveu os anos das revoluções feministas e hoje ainda não esquece que tem tantos direitos como os homens - e se eles têm o direito de jogar às cartas com os amigos, ela também o tem com as amigas.
Ao final da tarde, antes de ir para sua casa, ainda volta a passar pela casa por baixo da sua para ver se está tudo bem com os netos e dar um beijinho à sua filha. Sobe para sua casa e tranca a porta, porque “há muita gatunagem hoje em dia”, confidencia. Janta, vê uma novela ou outra nos dias em que tem menos sono e cedo acaba por se deitar, pronta para, no dia seguinte, ir outra vez organizar tudo para que nada falte à mesa da sua filha e dos seus netos na hora certa, preparando-os para o dia agitado que vão ter.
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... e, numa terra esquecida no Interior, fomos falar com...

António Madeira, um senhor de 71 anos residente no distrito de Bragança, numa pequena aldeia chamada Macedo do Mato. A sua rotina principal é a lida no campo, uma forma de sustentação que “ajuda a poupar na reforma em relação aos homens da cidade”, diz ele. Levanta-se por volta das 6h indo logo para o terreno. “A manhã é toda passada na labuta”, segundo o Sr. António, após a qual almoça o que a sua mulher, Maria Rosa, de 68 anos, lhe preparou no dia anterior. Até cerca das 15h descansa pois diz que “faz mal trabalhar com o calor”. Por volta das 17h vai até ao café e só às 19h30 regressa a casa para jantar, voltando depois ainda por pouco tempo ao café, dizendo adeus aos amigos às 21h30, quando vai para casa dormir, finalmente passando algum do seu tempo com a sua mulher, a quem compete, essencialmente, os afazeres em casa.
Preserva a crença conservadora em que o lugar da esposa é em casa, não podendo ser julgado por isso pois é a vida que sempre conheceu. Enquanto a Dona Maria  Rosa mantem os hábitos de "cozinhar, coser e lavar", que possivelmente seriam sinónimos de "solidão" a uma mulher urbana da mesma idade, o modo de vida do Sr. António é equivalente ao de um idoso numa grande cidade, pois, à excepção do trabalho no campo, aproveita o tempo livre para estar com os companheiros no café, num ambiente de verdadeiro convívio familiar.

Benedita Nunes, uma senhora que reside, com os seus 79 anos, no distrito de Viseu, na aldeia de Longa, levanta-se sempre por volta das 7h para estar na missa todos os dias às 9h, pois às 11h já tem de estar em casa para receber o padeiro que, por já conhecer a Sr.ª Benedita há muitos anos, trata também do resto das compras que esta precisa, levando-lhas a casa. “Sem falhar um dia”, diz-nos ela, vai ao cemitério tratar da campa do seu falecido marido de uma vida inteira, viúva à 19 anos, só quando não está na aldeia ou se encontra doente é que não faz a ronda diária. Volta para casa e faz um almoço leve, queixando-se que o médico, de quem parece não gostar muito, não a deixa comer nada do que ela gostava em tempos. Durante a tarde, já faz parte da rotina ir até à casa da filha, emigrada na Suíça, cuidar dos poucos legumes que fazem parte da horta. É um trabalho que já a cansa bastante, segundo o que nos deu a entender, então vai para casa cedo descansar. Às 18:30, também é “como que religioso”, segundo a Sr.ª Benedita, estar em casa para ligar o seu General Electric com mais de 20 anos, sintonizado sempre na Rádio Renascença, para ouvir e rezar o terço antes de jantar. Aquece a sua sopa e às 21h já está na igreja para rezar o terço mais uma vez, sendo que esta noite de vigília não se realiza todo o ano, com muita pena dela. Volta para casa onde ainda vê um pouco de televisão e, esgotada, vai dormir.
Mantem, sobretudo, os seus hábitos de vida conservadores, que deixam transparecer o pouco, ou possivelmente nenhum, contacto que teve com a vida urbana. Continua a exercer o papel de "dona de casa", devota à religião e ao marido, não encarando isso como solidão pois é apenas essa a realidade que conhece.